“porque as feridas mal cicatrizadas voltavam
a sangrar como se fosse de ontem” pag.43
“Lembrou a ele que os fracos não
entram jamais no reino do amor, que é um reino impiedoso e mesquinho, e que as
mulheres só se entregam a homens de ânimo resoluto, porque lhes infundem a
segurança pela qual anseiam para enfrentar a vida” pag. 86
Não seria exatamente esse um livro que eu indicaria para os
que ainda não conhecem a obra de Gabriel Garcia Márquez, indicaria “Memórias de
Minhas Putas Tristes” ou logo “Cem Anos de Solidão” (o melhor livro que já li),
mas ler “O Amor nos Tempos do Cólera” é se deparar com uma obra densa, uma
viagem profunda nas entranhas da alma humana. Vi certa vez em uma entrevista
que Gabo preferia esse livro do que sua obra prima vencedora do Nobel, dizia
que nesse livro estavam descritos nós humanos como realmente somos.
O livro conta a história de Florentino Ariza que após alimentar
uma febril paixão adolescente correspondida por Fermina Daza tem seus sonhos
destruídos ao ser rejeitado abruptamente por ela quanto tinha um pouco mais de
20 anos. O casamento de Fermina com o doutor Juvenal Urbino não sepulta o amor
obstinado de Florentino, que suporta 5 décadas de espera até que possa, com a
viuvez de Fermina, voltar a lutar por seu objetivo. Em mais de 50 anos
esperando Florentino Ariza faz de sua vida uma caminhada sem trégua até o dia
em que poucas horas após o sepultamento do Dr. Juvenal Urbino possa declarar
ainda vivo o sentimento de sua juventude por Femina Daza.
“Uma noite voltou do passeio diário
aturdida pela revelação de não só se podia ser feliz sem amor como também
contra o amor” pag 114
Gabo escreve o livro na postura de um narrador onisciente que
conta em detalhes os percalços tanto da
solidão de Florentino Ariza (uma solidão entrecortada por muitas mulheres e uma
vida libidinosa) quanto do casamento de Fermina e Juvenal (e a gradual descoberta
de Fermina que a vida conjugal se resume a pastorear rancores). A escrita de
Gabo beira a perfeição literária; até os vários personagens secundários da
trama tem uma história de vida, um perfil psicológico de modo que nenhuma
atitude deles parece fora de propósito no enredo. A descrição destes
personagens é tão bem feita que é possível imaginar que Gabo fosse capaz de
escrever um livro de 500 páginas sobre cada um deles. A narrativa do livro
conta com poucos diálogos entre os personagens; a grande viagem é pela mente e os sentimentos
deles. A habilidade de Garcia Marquez com as palavras rende descrições
envolventes e aforismos matadores ao final de cada parágrafo, tais como: “a
sabedoria nos chega quando já não serve pra nada”
“Era ainda jovem demais para saber
que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que
graças a esse artifício conseguimos suportar o passado” pag. 136
Para mim o mais marcante do livro é que a velhice não é
descrita por Gabo como uma fase de reconciliação com a vida, de conformismo; é
antes uma fase de conflitos íntimos profundos não apenas pelo diálogo que a
muita idade nos força a travar com o nosso irremediável fim, ou mesmo com a
percepção que a beleza e a vitalidade vão embora, mas sim porque na velhice o
passado nos assombra como um fantasma perturbador. É esse fantasma de um amor
de meio século que faz dois septuagenários desnudarem-se e se tocarem pela
primeira vez.
É um livro
grandioso que talvez não tenha seu merecido destaque por ser ofuscado por “Cem Anos
de Solidão” e que o detalhismo das descrições do ambiente e da psicologia dos
personagens afastaria leitores inexperientes e apressados; mas no fim das
contas promove uma viagem profunda e dilacerante na alma humana e nas suas
relações contraditórias com amor. Somente Gabo seria capaz de escrever um livro
de 430 páginas tratando sobre o amor e suas várias faces e formas sem resvalar
em nenhum traço de pieguice.
"Com ela aprendeu Florentino Ariza o que já padecera
muitas vezes sem saber: pode-se estar apaixonado por varias pessoas ao mesmo
tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma. Solitário entre a multidão
do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: 'O coração tem mais quartos
que uma pensão de putas' " pag. 337
Gabo deveria
ter sido proibido de morrer...
Para adiquirir: Editora Record
Preço R$55,00
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