Eu não nasci tricolor coral das bandas do Arruda, triste
destino. Durante a mais tenra infância até a adolescência fui doutrinado por
meu pai a torcer pelo Palmeiras, tinha camisa, boné bandeira, etc. Meu pai me
levava para ver o time palestrino em todos os jogos próximos, em 1993, então eu
com 9 anos, meu pai me levou pra assistir em Salvador uma final de Campeonato
Brasileiro entre Palmeiras x Vitória. O velho era, e ainda é, viciado no
Palmeiras, herança dos seus tempos de metalúrgico em São Paulo no fim dos anos
70.
Amo muito meu velho, e guardo com carinho os jogos que fui
com ele, menos pelo Palmeiras e mais por ter estado perto do meu pai nesses
momentos que ele valorizava, mas não posso negar que minha vida futebolística
sem o Santa Cruz Futebol Clube foi uma grande perda de tempo.
Nasci nos tempos que as parabólicas invadiram o interior do
Nordeste, daí só dava pra ver o futebol de Rio e de são Paulo mas quando chegou
aos meus 15, 16 anos a coisa começou a ficar muito sem graça. Comecei a achar
ridículo torcer pra um time do sul, sentia-e colonizado pela mídia sulista,
passei a ficar meio decepcionado com futebol.
Até que no dia 14 de Março de 2001 eu encontrei aquilo que
me faltava...
O campeonato Pernambucano daquele ano tava quente, atraindo
público, e eu resolvi assistir os jogos do Central pra ter o que fazer em
Caruaru quando matava as aulas no colégio. Numa terça-feira havia o jogo do
time do povo, no dia anterior as camisas corais enfeitavam a rua, os alunos do
Sete falavam tanto sobre a partida que me animei e resolvi ir. Um colega meu me
falou:
- Tu
vai ver a torcida mais bonita do mundo hoje
Ele não poderia estar mais certo. Chegando no estádio passei
a me impressionar com a vibração daquele povão vestido de encarnado-preto-branco,
com a maneira carinhosa e apaixonada como se referiam ao Santa cruz FC. Na arquibancada
lotada do estádio Lacerdão em Caruaru eu já estava envolvido pela massa, a pele
arrepiava com os cantos da torcida. O mais interessante era ver quem fazia
parte daquela multidão: gente de todas as classes, de todas as raças. Haviam naquela
arquibancada ricos que haviam comprado a camisa oficial no dia do jogo e pobres
que tinham a mesma camisa pirata surrada de anos, todos se abraçando, cantando
as mesmas canções, comendo espetinho e tomando Pitú. O Santa faz o mais rico
aristocrata sentir-se feliz por ser povo...
A partida começa e ao meu lado na arquibancada há um senhor
idoso, grande barba grisalha, usando uma camisa tricolor muito antiga e de um
tecido grosseiro, cabelos crespos e muito curtos. As marcas de expressão no
rosto e um olhar distante denunciavam que aquele homem já havia visto e vivido
muita coisa na vida. Era nítido que se tratava de alguém muito pobre, mais um
da massa de excluídos do país. Ficou ao meu lado e permaneceu calado durante
todo o primeiro tempo mas com os olhos vidrados em campo. Chega o intevalo,
ofereço um espetinho, e ele aceita satisfeito, agradece a gentileza com um
gesto de cabeça mas permanece calado. Passo o intervalo escutando os torcedores
corais reclamando do time e do jogo que se arrastava em 0x0.
Começa o segundo tempo, o povão se agita o Santa Cruz
melhora e aos 9 minutos a arquibancada explode num barulho ensurdecedor, Santa
faz 1x0. Nesse momento o pobre velho ao meu lado se abraça comigo e grita:
- Gol
do Santa, meu filho!!!!!Gol do Santa!!!! Graças a Deus!!! Graças a Deus!!!!
Quando me recomponho da alegria do gol olho para o velhinho
e ele chora emocionado, as lágrimas descem fartas de seus olhos, naquele
momento eu me tornei tricolor.
O jogo terminou 1x0 para o Santa, lembro que durante a saída
do estádio eu me perdi do velhinho, queria saber o nome dele, o que fazia, mas
nunca mais o vi.
Fui pra casa impressionado com a grandeza
daquele clube, daquele povão vibrante, eu mal conseguia dormir. Passei a noite
lembrando daquele senhor, nitidamente alguém que deve ter passado por muita
coisa, um pobre que luta pra sobreviver diante da miséria e da indiferença, um
daqueles que o individualismo e a insensibilidade social o transformaram numa
figura que de tão anônima passou a ser invisível. Mas ele estava lá no meio da
multidão, chorando emocionado com o gol do Santa, sentindo-se por uma noite
como um rei. Toda uma vida sofrida ficou minúscula diante da vitória tricolor e
um coração calejado encheu-se de alegria por uma noite. Ele deve ter ido
encarar a cruel realidade no dia seguinte com muito mais coragem e altivez.
Toda vez que vou ver o Santa jogar, que subo as arquibancadas,
lembro-me daquele senhor que com pouquíssimas palavras me traduziu o que é torcer
para o time do povo, o clube que nunca excluiu ninguém, que foi o primeiro de Pernambuco
a aceitar negros e pobres vestindo sua camisa, que quando é campeão o povo
sente-se como protagonista de uma verdadeira revolução popular.
Somos o time do povo, da massa, daqueles que lutam bravamente
todos os dias pelo seu sustento, um clube que se tornou vencedor e o mais
popular não pelo poder do dinheiro das
elites que usam o futebol para distrair a massa de seus direitos e dos
problemas da sociedade, mas pela raça daqueles que trabalham duro, que vivem a
realidade dura e cruel, vão todo domingo ao Arrudão incentivar o clube das
multidões a calar a boca das elites. No torcida do Santa Cruz o mais rico aristocrata
pode vir sem problemas, mas tem que se tornar povo, tem que falar como o povo,
tem que lutar ao lado do povo.
Parabéns ao clube das massas mais apaixonadas e a aqueles que o seguem e sustentam, os torcedores, são 99 anos vivendo
a alegria cotidiana de ser Tricolor-Coral.
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